Não poucas vezes as viagens de ônibus me provocaram reflexões consideráveis, quer pelo tempo de estrada, quer pelas paisagens que se apressam pela janela ao som de uma boa e indispensável música. Uma em especial me marcou bastante e, como de costume, me veio no momento mais despretensioso. Era uma sexta-feira, final de tarde, e eu precisava voltar para o litoral na casa de meus pais. A viagem em si é curta, o problema é que o horário não ajudou e o ônibus parava a todo instante para aqueles que deixavam o seu local de trabalho ao longo da estrada.
No meio do caminho havia uma cidadezinha pequena que cresceu as margens de um rio agora singelo, sobre o qual o ônibus passava de costume. Logo no centro estávamos quando me ocorreu a lembrança de um bom amigo que ali morava. Há muito ele me disse que sua casa era o segundo andar de uma papelaria que seu pai era dono, por isso redobrei minha observação para ver se a localizava. Num montão de imóveis antigos – que particularmente admiro muito – achei uma papelaria que batia com as descrições fornecidas.
Poderia ser a casa do meu amigo, é verdade, mas quando fitei o lugar aquela constatação já me tinha passado e o que permanecia era a admiração de quanto tempo já fazia que eu não entrava em uma papelaria. Foi quase calorosa a lembrança dos tempos de menino em que eu ia com a vovó, no meu aniversário, comprar lápis e papel para desenhar. Eu disse “quase calorosa”, porque o calor que fazia sobre o ônibus naquele final de dia já bastava até demais. Enfim, “já não uso lápis desde quando passei a usar caneta”, pensei comigo mesmo ali, e de fato já fazia tempo que não empunhava um lápis.
Lembrei de que, quando criança, as professoras da escola nos instruíam a usar lápis porque ainda não sabíamos bem quais palavras escolher, por isso, se errássemos a escrita, poderíamos apagar com a borracha e escolher uma palavra melhor. Já o uso da caneta demandava maior responsabilidade: não dava para apagar o que era escrito, por isso a escolha das palavras certas era algo a ser levado muito a sério. De imediato me atravessou a questão: quando deixamos de levar a sério o poder das palavras?
De fato, nossas palavras são ditas como se escritas por um lápis: a qualquer mero equívoco ou por simples conveniência, abandonamos o que dizemos e diligentemente buscamos uma forma de apagar nossos erros. Falamos com irresponsabilidade e não é raro dizermos palavras que não significam o que realmente queremos dizer. Sou réu confesso nessa situação. Certo dia, jantando à mesa com a família da minha namorada, ousei dizer que adorava a farofa que tinha sido feita. Certamente me arrependi de imediato quando fui repreendido pelo uso da palavra. Uma tia – a quem muito prezo – prontamente exortou: “você deve adorar somente a Deus”. Bem, é claro que minha devoção não se baseia em farinha, ovo e bacon, mas de fato a palavra que escolhi, literalmente, insinuava isso.
Outra lição que aprendi foi na minha adolescência, quando passei com meus pais por uma lanchonete que estampava: “Não aceitamos fiado!”. “Quem é ‘Fiado’ mãe?”, perguntei seriamente curioso. Foi quando ela me explicou que, antigamente, as pessoas tinham o costume de pegar produtos com os vendedores deixando tão somente a promessa de que pagariam depois. “Isso não funcionaria hoje” eu concluí desacreditado de que as pessoas ainda se comprometeriam tão somente por uma simples palavra.
Não só os antigos atribuíam grande valor às palavras, mas os mais antigos ainda, assim se portavam. Em Gênesis 27 vemos, resumidamente, a seguinte situação: Isaque, pai de Esaú e Jacó, já idoso e no fim de seus dias, convoca Esaú para então o abençoar. Porém, Jacó engana seu pai e recebe sua benção ao se passar pelo irmão, que ao descobrir, se desespera. Esaú pergunta a seu pai se não poderia o abençoar também, mas Isaque se cala e depois profere palavras que mais lhe pesaram como uma maldição.
Quando li essa passagem pela primeira vez, fiquei escandalizado – e assim imagino que todo leitor circunscrito às modernidades do mundo ocidental vá ficar. Acaso não poderia Isaque dizer qualquer coisa positiva para Esaú? O que aprendi foi que as palavras eram tidas para seus filhos como que uma profecia do que viriam a ser suas vidas – tal era o poder de uma palavra dita – e que era da vontade de Deus que a benção recaísse tão somente sobre Jacó.
Ainda sobre a vontade de Deus, cabe lembrar que Ele intenta que atribuamos a mesma seriedade às nossas palavras também. Jesus ensinou que devemos honrar o que falamos e que nossas palavras sejam exatas: “Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’; o que passar disso vem do Maligno” (Mt 5:37). Ensinou, ainda, sobre a responsabilidade que devemos ter ao escolher as palavras: “Mas eu lhes digo que, no dia do juízo, os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. Pois por suas palavras você será absolvido, e por suas palavras será condenado” (Mt 12:37).
Poderia, ainda, mencionar o poder das palavras ao escolher o nome de filhos, conforme vemos ao longo de todo o Antigo Testamento, e como seu significado era determinante – a este respeito, recomendo fortemente a pesquisa sobre quem foi Jabez. Bem como poderia dissertar sobre o poder do “Haja”, como sendo uma única palavra dita por Deus, mas que ao mesmo tempo é o verbo, que por sua vez é Cristo (Jo 1:1). Contudo, basta a esta oportunidade a reflexão de que somos gente madura o suficiente para abandonar o lápis e assumir a caneta de uma vez por todas.
Concluo tais lições da infância com o meu primeiro poema escrito e publicado, lá pelos idos do saudoso 7º ano:
As palavras podem te machucar
Te fazer rir e até se apaixonar
Quando de alguém se aproximar
As palavras ofendem
Mas também expressam o que sentem
O amor elas podem mostrar
E coisas discretas podem revelar
Um sentimento podem dividir
Com amigos podem se divertir
E também se alegrar
Porque se souber usar as palavras
A vida de alguém você pode mudar.
-Henrique Filho